Produto na prática

Reflexões de um CPO freelancer sobre Produtos Digitais, Startups, e os atalhos que aprendi nos quase 20 anos de carreira em 3 continentes.

COMO SABER QUE NÃO USO GPT 😀 

A vida de freelancer tem seus altos e baixos, passei por um momento onde os dias acabavam muito antes dos trabalhos que me propus a fazer. Só escrevo quando estou me sentindo bem e quero organizar minhas ideias com profundidade. Escrever é uma ótima forma de refletir e obter clareza e por isso não utilizo LLMs para gerar estes textos. A parte ruim é a frequência ficar prejudicada por momentos incertos da vida.

Pra compensar o hiato teremos aqui dois textos, uma longa reflexão sobre epistemologia, minha carreira e meus objetivos aqui, e mais um capítulo do Diário de Produto recheado de experimentos e métricas

A PRÁTICA EVOLUI PRA TEORIA

Ninguém quer mais ouvir falar de teoria, o negócio é o que deu certo na prática.

Concordo totalmente com esse sentimento, discordo frontalmente da conclusão. Precisamos falar um pouco de epistemologia, a “filosofia da ciência”, ou a forma como a humanidade constroi conhecimento.

Fiz engenharia, lá a gente aprende que a Física tenta encontrar leis que regem o comportamento de tudo que nos cerca no universo, e usa a matemática pra expressar estas leis e calcular os comportamentos com exatidão mesmo quando não é possível observar diretamente. Essa possibilidade faz com que se denomine de “Ciência exata”.

Já as Ciências Humanas não desenvolvem cálculos que prevêem todas as possibilidades. Elas são empíricas, ou seja, se faz observações rigorosas do que funcionou ou não funcionou naquela área, e tenta se chegar numa quantidade suficiente de observações que sugiram algum tipo de padrão, os pontos em comum que funcionam em qualquer ambiente, ou que falham em qualquer ambiente.

Ou seja, é extrair o suco mais valioso do que deu certo na prática — e aí se criar uma teoria, do grego “Theoria” que significa “Observar", “Examinar”. Tem a mesma raiz de “Theoros", ou espectador (Bonus points se você leu isso com a voz do Capitão Nascimento).

Só que de algum jeito a palavra foi se deturpando para ser usada como “Algo que alguém imaginou mas nunca testou na prática e não é conhecimento válid”.

Sabem o que não gera conhecimento válido? A prática solitária. É muito difícil tirar conclusões a partir de um punhado de observações. Contextos mudam, ambientes mudam, pessoas mudam, mercados mudam. O que deu certo num lugar pode não dar em outro, o que deu certo até aqui pode não ser o que precisamos daqui em diante.

Enquanto “teoria” virou sinônimo de algo sem lastro na realidade, “prática” virou sinônimo de “aposta segura, já testada”. E aí tome receita de sucesso proveniente de um punhado de experiências, sem uma análise mais profunda de como aquilo pode ser aplicado ou adaptado em ambientes totalmente diferentes. Uma pessoa que só trabalhou num gigante como o Google sabe dizer o que uma startup precisa pra sair do zero? Quem só trabalhou em outro país sabe o que dá certo no Brasil?

Essa prática é subjetiva, com uma série de viéses que só podem ser expurgados com mais observações em outros ambientes para extrair causas e efeitos generalizáveis, ou usando outro mecanismo da ciência: A revisão dos seus pares, submetendo sua experiência à apreciação de outras pessoas da área e engajando em debates visando detectar em quais contextos aquilo pode funcionar e o quão comuns eles são.

Aqui tenho algumas perspectivas mais pessoais.

Cheguei nessa carreira porque inventei um produto sem querer, eu só queria acelerar um projeto que estava tocando, e alguns anos mais tarde estava desembarcando no Canadá para trabalhar na empresa que comprou a tecnologia de mim. Eu era engenheiro de Computação com mestrado em Marketing, algumas bases de como botar um produto de tecnologia no mercado eu tinha, dali em diante fui autodidata. Era 2007 e não existiam cursos ou teorias consolidadas. A comunidade era pequena mas vibrante, com muita transparência no compartilhamento do que dava certo ou errado, com tentativas de explicar os motivos.

Nesses quase 20 anos em gerência de Produto digital raríssimas vezes eu não fui a pessoa mais experiente da área. Estudava muito, duvidava muito dos outros e de mim, me angustiava muito cada vez que minhas features não geravam nenhum resultado. Em dado momento prometi a mim mesmo: Me dedicaria a ensinar tudo que aprendi, dar atalhos, pegar na mão do máximo de pessoas e ser o líder técnico que nunca tive. Por conta desta sede de aprender muito mudei muitas vezes de mercado, passei por B2C, B2B, B2B2C, mídia, educação, ecommerce, AI antes de virar moda. Quando já sentia que estava chegando no teto no Brasil fui pra Europa pra poder botar produtos mundiais no meu portifolio. Anos depois voltei porque acredito que o Brasil seja um lugar de pessoas extraordinárias, com muita inteligência, inventividade e coragem. Não há motivo pras startups daqui não dominarem o mundo, e quero ajudar este ecossistema.

Por isso passei a escrever em português no Linkedin, dar aulas e palestras, e estou aqui. Tudo que falo, eu vivi e vi de muito perto. Tudo que prego, pratico. Já testei um monte de frameworks, metodologias, modismos, novidades, só escrevo depois de ter tempo de consolidar o que serve pros outros. Não é só ver o que dá certo ou errado, é desenvolver uma explicação sólida dos porquês, e aplicar nos clientes que atendo como CPO fracionado.

Mesmo assim, já escutei em alguns lugares que “sou teórico”. Sem exceções quem rotulou assim foi gente com menos experiência. Isso não é um julgamento, é uma tentativa de entender porque algo que pra mim é tão obviamente prático é recebido dessa forma. As pessoas confundem “Prática” com “O que eu vivi/o que eu concordo” e “Teoria” é qualquer coisa que exija mais abstração. É impossível o conhecimento andar pra frente assim, e é importante que entendamos isso.

Uma coisa é uma vivência, outra coisa é o que eu acho, e outra coisa é o conhecimento útil pra uma comunidade. Eu sei bem o que estou tentando construir, e agradeço muito por vocês que assinam aqui.

Conto com vocês pro crescimento desta comunidade, seja compartilhando estes textos ou decidindo escreverem também. Sigamos juntos.

DIÁRIO DE PRODUTO - Dia 9

Documentando a jornada de fazer um produto dar lucro - ou falhar miseravelmente. Em todo caso, nos divertiremos juntos.

Desde o último post tenho 4 situações importantes pra atualizar: O resultado de implantar um novo meio de pagamento, uma descoberta sobre elasticidade do nosso preço, o aumento enorme de gastos com cloud sem contrapartida de receita e um teste de fake door bastante revelador.

1 - Uma nova opção para pagar

Como o produto é internacional e de pagamento recorrente a primeira escolha foi utilizar o Paypal pros pagamentos. Me chamou a atenção ver que a maioria dos e-mails de assinantes eram @gmail, algo que num produto B2B não faz muito sentido. Uma hipótese possível: As empresas não tinham conta Paypal e o povo usava suas contas pessoais pra pagar. Será que isso não seria uma barreira de entrada pro produto?

Resolvi testar botando um formulário de pagamento via cartão usando o Stripe junto com o botão de pagamento via Paypal deixando que o pagante optasse. Resultado: 96% das compras a partir dali foram via Stripe. Tem um viés do layout da página, deixei o botão de Paypal abaixo do form, mas ainda assim o público deixou claro que um formulário com os campos de cartão é preferível a um botão “Clique aqui pra ir lá num provedor de pagamento criar sua conta e de lá pagar”.

Seria natural esperar um aumento na taxa de conversão da página de pagamento, mas segue muito baixa, abaixo de 10%, o que sugere que a proposta de valor do produto ainda não bateu com o esperado pelo público-alvo. E essa não foi a pior descoberta que fiz…

2 - Experimentando a elasticidade

O produto antigamente tinha alguns planos, o de entrada era super barato e super limitado, com inconveniências artificialmente inseridas pra forçar o usuário a fazer upgrade se quisesse a real experiência que queremos oferecer. O primeiro upgrade custava 5 vezes mais.

Eu chamo isso de “Experiência de passagem aérea”. Quem voa faz tempo sabe que passageiros ao longo de tempo foram tendo uma experiência cada vez pior até o ponto em que viajar de avião tenha virado um inferno, com preço adicional até pra ter direito a uma poltrona desenhada pra seres humanos caberem.

O básico de um produto é solucionar o problema a que se propõe, então não faz sentido dar uma experiência capenga pro usuário e esperar que ele confie o suficiente no produto a ponto de pagar mais ainda. Gerar sentimentos ruins não pode ser modelo de negócio, a não ser que você deseje objetivamente piorar a vida das pessoas e o mundo ao seu redor.

Minha ideia foi então ter um único plano, praticando o preço mais barato, e com isso aumentar o volume de vendas.

Existe um conceito de microeconomia chamado “elasticidade da demanda” que mede como a venda de um produto varia de acordo com as mudanças de preço. É intuitivo que ao dar um desconto o seu produto venda mais, e chamamos isso de “demanda elástica”. Só que também podem existir produtos cuja demanda tem muito menos sensibilidade a preço, seja porque já são muito baratos, ou porque têm nichos muito específicos que vão dar um jeito de pagar o que for.

…Ou seja lá qual for a explicação que valha pro meu produto, porque o fato é que destruí minha receita. No primeiro mês arrecadamos 50% menos. De lá pra cá subiu apenas 11%.

3 - Estraga de um lado, conserta (um pouco) do outro

O rombo foi piorado por algo que já vinha acontecendo: O tier de usuários gratuitos testando a ferramenta não só não surtiu o efeito esperado na receita como aumentou as despesas com cloud. O que resolvi passar pro topo do backlog: Não salvar mais na cloud as atividades de usuários anônimos (não logados), que representa a maior parte da atividade. Agora fica tudo pro local storage do navegador, salvando apenas quando o usuário se loga. Isso tirou uns 12% dos gastos totais da empresa.

Esse gráfico de Despesas (vermelho) e Receita (azul) no tempo conta bem essa história. Tá na cara em qual mês eu cortei o plano mais caro. Vejam ali logo depois a gente priorizando cortar despesas enquando a receita deu ali um pequeno vôo de galinha.

O que queremos ver aqui é a linha azul passar da vermelha…

4 - Fake door bem usada é discovery

Na medida em que vamos avançando na história desse produto vamos também amadurecendo as hipóteses do que falta pra atingir o market-fit. O sucesso do trial gratuito mostra que há demanda, o fracasso de vendas mostra que há obstáculos pra endereçar o que o público precisa.

Desenhei algumas alterações que sofisticam os papeis de diferentes tipos de usuários como preparação para botar no ar funcionalidades para os donos da grana: Os gerentes. Essas alterações são estruturais, então engenharia tem que passar a britadeira em tudo. Pra não estagnar o produto até lá resolvi fazer um teste parecido com o pagamento, mas agora no login.

O produto só aceita login via Google. Boa parte das empresas está nesse ambiente, mas será que não é por isso, e não por culpa do Paypal, que há poucos e-mails corporativos assinando? Ao invés de perguntar, testei. Refizemos o formulário de cadastro dando 3 opções: Google, Microsoft e e-mail/senha.

Ao clicar no Google o cadastro acontece normalmente, mas se clicar nas outras duas opções o usuário recebe a mensagem “Conexão com o serviço não está funcionando” - é meio fajuta mas não deixa de ser verdade - dando a opção de fazer login com o Google mesmo ou nos enviar seu e-mail de contato para ser avisado quando os serviços estivessem funcionando. Os resultados após um mês:

  • 40% das pessoas escolheram as duas outras formas de se cadastrar

  • Dessas, 55% escolheram Microsoft, 45% e-mail/senha

  • Ao verem a mensagem, 40% nos enviou e-mail de conta, 32% fez cadastro via Google.

  • Os domínios dos e-mails que recebemos têm .gov e grandes corporações do mundo todo

Não restou dúvida de que há uma demanda que a falta de opção de login estava reprimindo. Será que isso reverte em mais pagantes?

Saberemos agora em junho, porque implementar esses cadastros/logins alternativos foi pro topo da fila e já botamos no ar.

Chegou até aqui?

Os artigos que escrevo estão publicados aqui:

Escrevo por amor à área e pra dar meu quinhão no desenvolvimento de produtos espetaculares no Brasil. Se achou útil, compartilhar com seus pares me ajuda muitíssimo.

Quer mentoria, palestras ou contar comigo na sua liderança? Veja como trabalho aqui: https://produtoopentalent.com

Até a Próxima,

Fábio Duarte, CPO as a Service

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